8.7.13


Foi há quase três semanas que estava a estacionar a carrinha quando vejo ao fundo no cimo da rua uma mulher aos gritos, ora levando as mãos à cabeça ora levantando os braços ao céu. De algum modo, suspeitei logo do que se tratava. Mas paralisei. A rua estava vazia, era cedo, a aldeia ainda estava a acordar. Os gritos apareciam e desapareciam enquanto a mulher entrava e saía de casa continuamente. Logo a seguir, um homem que passava por ali aproximou-se e ela agarrou-lhe o braço. Aos poucos, muito aos poucos, assomavam à porta uma ou outra velha, com um pano de cozinha ou uma vassoura nas mãos, espreitando, algumas dissimuladamente outras nem tanto. Abri o meu local de trabalho, as janelas e as luzes, e regressei à esquina. Entretanto, já se tinham juntado algumas mulheres naquela porta, algumas paralisadas pelo medo, com a mão na boca, outras irrompendo pela porta fora com as mãos na cabeça. O homem que passava e que foi puxado lá para dentro nunca mais saiu. Imaginava que ele estivesse de alguma forma a tentar cortar a corda ou a ligar para a polícia. Ver aquele número de pessoas que acorriam, e a ocasional mulher que passava por mim, descendo a rua a correr e a chorar, libertou-me da indecisão cínica por que tinha passado minutos antes, ainda com a mala ao ombro e as chaves da carrinha na mão, de ir acorrer ou não. O mal já estava feito, isso era óbvio, eu não iria fazer nada que o pudesse ter evitado. Naquele momento, a última coisa que queria era ver um homem pendurado numa árvore. É certo que a minha predisposição me leva sempre a bloquear as emoções e a abraçar a vertente prática - neste caso, urgente - da situação, pelo que o mais certo seria ter procurado uma maneira de cortar a corda ou outra qualquer forma de arrancar dali o homem, talvez até tentar manobras de reanimação, independentemente de ele estar morto há minutos ou horas, não sabia. Ao longo do dia surgiram as inevitáveis flores de folclore, que o corpo ainda estaria quente, etc etc. Isto provocou-me arrepios como se estivesse a imaginar uma cobra. E, segundo atrás de segundo, abracei o cinismo, egocentrei-me enquanto observava o cimo da rua a ficar cada vez mais negro a cada pincelada de mulher que acorria e se juntava. Não mexi uma palha. Liguei à gnr mas tinham mesmo acabado de ser avisados. Notei que a ambulância do inem andou um pouco à procura da casa, e pensei em correr para os ir ajudar, mas não podia deixar o meu local de trabalho e talvez isso nem fosse assim tão útil. Este sítio é tão estúpido, absurdo e incompreensível para mim que a minha estratégia vital é a de, há já algum tempo, reprimir as emoções e não sair de casa, não ver nada nem ninguém. Foi isso que fiz, virar as costas. Este sítio agarra-se a mim como uma goma peganhenta e nauseabunda que evita até que cada poro respire, entranha-se na alma. A última coisa que precisava agora era de ver um homem pendurado à minha frente, as calças mijadas, a língua de fora, o sangue no pescoço, o cabelo despenteado, os dedos tesos e os pés flácidos. Entrei em modo de sobrevivência. As mulheres desciam a rua tapando o grito com a mão. O pranto colectivo é uma coisa muito poderosa. Estranhamente, é uma concentração de emoções individuais que perpassam de pessoa para pessoa, como se cada uma fosse pintada de uma cor, e de longe só se vê um aglomerado daquela cor, um jardim de dor e consolação, o que cada um sente já não é só seu mas uma parte de um todo. Como o amor.

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