24.4.12


Nunca me tinha dado ao trabalho de procurar pelos textos originais de algumas notícias que o Público traz assinada por publicações estrangeiras e que ostenta como exclusivas, nem sequer alguma vez pensei na sua tradução, se tinha sido exímia, competente ou uma completa desgraça. Disse competente pois penso que é um sentido prático que se adopta no jornalismo, muito mais que a estilística. Mas hoje fiquei alerta quando a expressão sentido comum terminou uma notícia sobre a exibição de troféus pelos soldados. Não é que esteja errada, mas como eu sou um chato do caraças, estas coisas sempre me incomodaram como pedras no sapato, desnecessárias e fáceis de tirar. Até porque cresci a saber que sentido comum significa sentido próprio, significado. Às vezes é preciso mais um pouco de common sense nestas coisas.

E qual é o mal de se exibirem troféus? Olha-me esta!… Bem, talvez por se pensar que a guerra é limpa e asséptica como um hospital deveria ser. A cultura popular está cheia de exemplos de brotherhood entre inimigos, como se isso lavasse o facto de que cada um deles procura absoluta e irrevogavelmente o fim do outro, e mesmo que isso implique um momentâneo hiato dessa camaradagem, a qual é – penso ser desnecessário dizer – um perfeito empecilho a esse objectivo.

(A vida real também está cheia de exemplos: de entre o muito lixo que se lê ao longo da vida, há sempre algo que se aproveita, e um desses exemplos é um livro que li na adolescência em que a autora, tentando dar alguma credibilidade à história de amor futurista que infestava o romance, engendrava um sistema de ensino público em que se ensinava o horror da guerra às criancinhas colocando-as no meio dela, isto é, rodeadas de um holograma realista que – tal como ao Alex deLarge – lhes fazia retorcer as entranhas cada vez que no futuro pensassem em andar à porrada no recreio ou na frente de batalha com alguém.)

Imagino que essa mesma camaradagem possa transpirar para o adversário, mas desnecessário será referir que tal só poderá acontecer depois da batalha, quando ambos os combatentes forem velhinhos reformados que contam histórias fabulosas aos netos. Quando não acontece, não se lhes deve impor a moral católica que infesta a sociedade, até porque a batalha é amoral. Há um objectivo (ou um alvo) que tem de ser atingido, e é basicamente isso.

Se ainda nos surpreendemos? Isso é porque no resto dos dias é-nos imposta uma conduta moral que não é aplicável no caso de uma batalha. E se há quem veja como uma batalha o ascender profissionalmente ou o comprar uma empresa, esses são logo chamados de agressivos ou imorais. Surpreendemo-nos tanto com isso porque não pensamos nisso todos os dias, assim como nos surpreendemos com os elevados números de violência doméstica quando é o dia da violência doméstica, ou com os elevados números de poluição quando é o dia da Terra, sem no entanto mexermos um dedo para fazer algo contra isso. A História ajuda sempre a não nos surpreendermos tanto.

Mas como ela também é permeável à cultura e à moral das épocas em que é feita, muitas vezes o que é prática corrente passa a mero relato, e episódios houve que chocaram tanto os historiadores que a sua escolha pela omissão deu azo a nada mais que boatos. É daí que vêm os relatos de guerreiros índios norte-americanos em êxtase sexual depois da batalha. Mas, por outro lado, está bem documentado o uso de crânios de adversários já pelos vikings, de onde bebiam calva (vide Asterix e os vikings) assim como se explicam muitos casos de canibalismo em algumas culturas sul-americanas, no qual o guerreiro vitorioso adquire, como espólio merecedor, as qualidades guerreiras do adversário simplesmente comendo-o (ou melhor, certas partes apenas; agora não me lembro de quais). Ninguém o julga por isso porque não há razões para tal. Na nossa sociedade julgam-se os que agem como selvagens porque é uma sociedade que para se distinguir e pavonear inventou o título selvagens; é uma sociedade anti-selvagens. E tão orgulhosa da sua compostura que é através de palavras (o fruto da alta razão, o oposto da selvajaria) que exibe a sua vitória, são elas os troféus da sua superioridade em relação aos ditos selvagens.

Exibir um troféu é uma expressão que pode facilmente ser analisada: exibir significa mostrar, ou seja, ostentar algo a alguém, para que esse alguém veja o que estamos a mostrar e o porquê disso. É isso que significa exibir. As marcas cedo perceberam isto quando começaram a gravar os seus logotipos na frente de T-shirts, transmitindo a mensagem aos adolescentes que ao usarem aquela roupa eles estariam a transmitir uma mensagem (deles), e não que se estavam na realidade a transformar em cartazes publicitários ambulantes que se pagavam a eles próprios. É esse o propósito de se exibirem no peito colares feitos com dentes ou orelhas de adversários, para que outros (possíveis) adversários pensem duas vezes antes de dizer alguma coisa, assim como espetar numa estaca as cabeças de ladrões, violadores ou simplesmente agitadores e colocá-las bem alto à entrada das cidades medievais significava um sério aviso aos outros ladrões, assassinos e discordantes em geral. Penso que estas maneiras surtem muito mais efeito que uma simples placa à entrada da cidade dizendo o que pode vir a acontecer aos incautos criminosos. Aliás, isso já acontece no código penal.

Exibir pode ainda significar uma atitude, sem envolver troféus ou adornos. Sem querer aprofundar demasiado o tema da linguagem corporal, penso que é inútil referir o comportamento dos adolescentes quando competem por miúdas ou mencionar meios de auto-perseverança como o simples encher o peito e erguer o queixo.

E um troféu é só algo que se ganhou após uma árdua batalha, seja ela uma escaramuça medieval ou uma corrida de sacos de batata. Troféu não significa espólio: o troféu exibe-se, o espólio guarda-se. Serve para dizer que ganhámos, que somos o vencedor. Repare-se que não disse justo vencedor (assim como não digo aparatoso acidente ou justa causa) porque a batalha não tem – ou pode não ter – nada a ver com justiça. Isso são já coisas que dizem aos deuses, etc, etc. Porque o vencedor muitas vezes é quem não merece a vitória – é quem vence, mais nada. Vencedor significa isso. Tudo o resto é mitologia, ideologia. Sem ideologia, não nos surpreenderíamos tanto. Ou pelo menos não se escreveria que nos surpreendemos tanto com coisas que são ancestrais e que a sociedade ainda não conseguiu matar. Às vezes não se pode ser tão estérico; é preciso mais um pouco de senso comum nestas coisas.

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