Nunca me tinha dado ao trabalho de procurar pelos textos
originais de algumas notícias que o Público traz assinada por publicações
estrangeiras e que ostenta como exclusivas, nem sequer alguma vez pensei na sua
tradução, se tinha sido exímia, competente ou uma completa desgraça. Disse
competente pois penso que é um sentido prático que se adopta no jornalismo,
muito mais que a estilística. Mas hoje fiquei alerta quando a expressão sentido comum terminou uma notícia sobre
a exibição de troféus pelos soldados. Não é que esteja errada, mas como eu sou
um chato do caraças, estas coisas sempre me incomodaram como pedras no sapato,
desnecessárias e fáceis de tirar. Até porque cresci a saber que sentido comum
significa sentido próprio, significado. Às vezes é preciso mais um
pouco de common sense nestas coisas.
E qual é o mal de se exibirem troféus? Olha-me esta!… Bem,
talvez por se pensar que a guerra é limpa e asséptica como um hospital deveria
ser. A cultura popular está cheia de exemplos de brotherhood entre inimigos,
como se isso lavasse o facto de que cada um deles procura absoluta e
irrevogavelmente o fim do outro, e mesmo que isso implique um momentâneo hiato
dessa camaradagem, a qual é – penso ser desnecessário dizer – um perfeito empecilho
a esse objectivo.
(A vida real também está cheia de exemplos: de entre o muito
lixo que se lê ao longo da vida, há sempre algo que se aproveita, e um desses
exemplos é um livro que li na adolescência em que a autora, tentando dar alguma
credibilidade à história de amor futurista que infestava o romance, engendrava
um sistema de ensino público em que se ensinava o horror da guerra às
criancinhas colocando-as no meio dela, isto é, rodeadas de um holograma
realista que – tal como ao Alex deLarge – lhes fazia retorcer as entranhas cada
vez que no futuro pensassem em andar à porrada no recreio ou na frente de
batalha com alguém.)
Imagino que essa mesma camaradagem possa transpirar para o
adversário, mas desnecessário será referir que tal só poderá acontecer depois da batalha, quando ambos os
combatentes forem velhinhos reformados que contam histórias fabulosas aos
netos. Quando não acontece, não se lhes deve impor a moral católica que infesta
a sociedade, até porque a batalha é amoral. Há um objectivo (ou um alvo) que
tem de ser atingido, e é basicamente isso.
Se ainda nos surpreendemos? Isso é porque no resto dos dias
é-nos imposta uma conduta moral que não é aplicável no caso de uma batalha. E
se há quem veja como uma batalha o ascender profissionalmente ou o comprar uma
empresa, esses são logo chamados de agressivos ou imorais. Surpreendemo-nos
tanto com isso porque não pensamos nisso todos os dias, assim como nos
surpreendemos com os elevados números de violência doméstica quando é o dia da
violência doméstica, ou com os elevados números de poluição quando é o dia da
Terra, sem no entanto mexermos um dedo para fazer algo contra isso. A História
ajuda sempre a não nos surpreendermos tanto.
Mas como ela também é permeável à cultura e à moral das
épocas em que é feita, muitas vezes o que é prática corrente passa a mero
relato, e episódios houve que chocaram tanto os historiadores que a sua escolha
pela omissão deu azo a nada mais que boatos. É daí que vêm os relatos de
guerreiros índios norte-americanos em êxtase sexual depois da batalha. Mas, por
outro lado, está bem documentado o uso de crânios de adversários já pelos
vikings, de onde bebiam calva (vide Asterix
e os vikings) assim como se explicam muitos casos de canibalismo em algumas
culturas sul-americanas, no qual o guerreiro vitorioso adquire, como espólio
merecedor, as qualidades guerreiras do adversário simplesmente comendo-o (ou
melhor, certas partes apenas; agora não me lembro de quais). Ninguém o julga
por isso porque não há razões para tal. Na nossa sociedade julgam-se os que
agem como selvagens porque é uma sociedade que para se distinguir e pavonear
inventou o título selvagens; é uma
sociedade anti-selvagens. E tão orgulhosa da sua compostura que é através de
palavras (o fruto da alta razão, o oposto da selvajaria) que exibe a sua
vitória, são elas os troféus da sua superioridade em relação aos ditos
selvagens.
Exibir um troféu é
uma expressão que pode facilmente ser analisada: exibir significa mostrar, ou
seja, ostentar algo a alguém, para que esse alguém veja o que estamos a mostrar
e o porquê disso. É isso que significa exibir. As marcas cedo perceberam isto
quando começaram a gravar os seus logotipos na frente de T-shirts, transmitindo
a mensagem aos adolescentes que ao usarem aquela roupa eles estariam a
transmitir uma mensagem (deles), e não que se estavam na realidade a transformar
em cartazes publicitários ambulantes que se pagavam a eles próprios. É esse o
propósito de se exibirem no peito colares feitos com dentes ou orelhas de
adversários, para que outros (possíveis) adversários pensem duas vezes antes de
dizer alguma coisa, assim como espetar numa estaca as cabeças de ladrões,
violadores ou simplesmente agitadores e colocá-las bem alto à entrada das
cidades medievais significava um sério aviso aos outros ladrões, assassinos e
discordantes em geral. Penso que estas maneiras surtem muito mais efeito que
uma simples placa à entrada da cidade dizendo o que pode vir a acontecer aos
incautos criminosos. Aliás, isso já acontece no código penal.
Exibir pode ainda significar uma atitude, sem envolver troféus
ou adornos. Sem querer aprofundar demasiado o tema da linguagem corporal, penso
que é inútil referir o comportamento dos adolescentes quando competem por
miúdas ou mencionar meios de auto-perseverança como o simples encher o peito e
erguer o queixo.
E um troféu é só algo que se ganhou após uma árdua batalha,
seja ela uma escaramuça medieval ou uma corrida de sacos de batata. Troféu não
significa espólio: o troféu exibe-se, o espólio guarda-se. Serve para dizer que
ganhámos, que somos o vencedor. Repare-se que não disse justo vencedor (assim
como não digo aparatoso acidente ou justa causa) porque a batalha não tem – ou
pode não ter – nada a ver com justiça. Isso são já coisas que dizem aos deuses,
etc, etc. Porque o vencedor muitas vezes é quem não merece a vitória – é quem
vence, mais nada. Vencedor significa isso. Tudo o resto é mitologia, ideologia.
Sem ideologia, não nos surpreenderíamos tanto. Ou pelo menos não se escreveria
que nos surpreendemos tanto com coisas que são ancestrais e que a sociedade
ainda não conseguiu matar. Às vezes não se pode ser tão estérico; é preciso mais um pouco de senso comum
nestas coisas.
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