3.1.12

Crises


Vivemos na época das crises. «Crise» passou a ser como que algo positivo, a presença, e não a falta de alguma coisa. Não, possivelmente, que as haja maiores ou em maior número do que em qualquer outra época, mau grado as aparências – mas a consciência de as haver tornou-se uma realidade estrutural, um elemento básico na definição do nosso tempo. Crise já não é talvez crise: é a definição dum novo estado de espírito, de nova forma de consciência: a sua popularização vai de par com as de «absurdo», de «negatividade», e de outras tantas noções que, no nosso vocabulário, exprimem situações de aparente impossibilidade.


Nada evidencia mais claramente a «estabilização» da crise como o empenho posto pelos regimes – e não só pelos totalitários – em promover a criação de pseudoverdades fixas e indiscutíveis, de tipos únicos de pensar, agir, criar; esta organização de mentira prova precisamente que não se crê no valor da verdade, pois descrer da sua eficácia é realmente não acreditar nela própria; este culto da aparência é um dos mais flagrantes indícios – por contraste – de não se conceber outra forma de uma verdade unanimemente aceite que não seja o seu exacto oposto: a mentira unanimemente imposta.


Isto não é caricatura; a realidade do nosso tempo tirou-nos o trabalho de a fazer, porque é caricatura ela própria. Não há hoje vergonha em fazer uma coisa e chamar-lhe o contrário, como ainda há pouco ficou bem exemplificado pelo incrível discurso do general Péron – caricatura de caricatura – chamando pacificação a uma imposição. E a desvergonha atingiu tais proporções que acabamos por nos perguntar se realmente isto não será tudo um problema escolar.


Com efeito, ou uns não sabem falar e os outros entender – ou então nem uns nem outros dão já às palavras qualquer significação humana. Mas têm as palavras algum valor, senão este? Tem: um valor técnico, digamos assim; um valor puramente convencional. Alegará algum leitor, e com aparente razão, ser a linguagem uma convenção. É verdade que nos ensinam isso; mas «convenção» pode ser tomado em vários sentidos, e quando se fala na convenção da linguagem não se pretende afirmar que ela seja uma arbitrariedade, mas simplesmente que as palavras não constituem uma «realidade em si», como julgam aquelas pessoas para as quais ela é «definitiva».

As palavras não têm em si a verdade, não são a verdade – mas ganham um peso de realidade que precisamente torna possível a literatura. Não são a verdade – mas não são falsas: enriquecem-se de todo o calor humano com que a sua passagem pela boca dos homens as transformou de sinal em expressão viva. E é isso que não existe na linguagem tomada como técnica, isto é, reduzida a sinais. É isso que não existe nas palavras com que os senhores do mundo pretendem fingir que estão a governar a fim de dar às massas a ilusão de que estão a ser governadas.


Esta é a crise autêntica: a grande falência do homem: que delegou, ou deixou que se apossassem da aparência de ele ter delegado, naqueles que hoje vemos sentados nas cadeiras do poder, decidindo os destinos do homem, e a própria possibilidade da sua sobrevivência, com mentalidade de financeiros, de gerentes comerciais e de empreiteiros. Que tudo reduzem a somas e subtracções, a cálculos de resistência de materiais, e que por cima disso põem as palavras que lhes parecem próprias a dar a ilusão de que o homem, esta coisa de carne, alma e nervos que é o homem, conta para alguma coisa na sua contabilidade e nas suas estatísticas.


Os meios de comunicação extensa e rápida estão realmente a caminho de fazer do mundo um todo – mas um todo… de vazio. Porque aquilo que vai tão depressa dum ponto do mundo a qualquer outro, a palavra, já não serve senão para transmitir a mentira; que talvez haja uma lei, a descobrir por qualquer sábio, segundo a qual a mentira cresce tanto mais quanto mais longe alcança. E não nos pode restar dúvida de que, quando Ortega y Gasset lançou aquela fórmula tão cómoda e que tão grande sucesso obteve sobre a «rebelião das massas», só cometeu este pequeno erro: que em vez de rebelião o que houve foi a demissão do homem.


A palavra não é a responsável por isto: o que lhe aconteceu é apenas o resultado; se os homens aceitam que ela se tenha tornado em simples veículo da mentira, é porque perderam de todo o sentido de haver alguma relação entre ela e a experiência humana. A propaganda é a própria expressão de ela se ter tornado num veículo de degradação, despojando-se cada vez mais de sentido real. Capa de todas as abjecções, passou a ser a mortalha em que o cadáver da humanidade vai descendo à cova, dispensando qualquer bomba atómica ou de hidrogénio, que decerto já não teriam que aniquilar senão animais sem revolta nem consciência.


(…)


Adolfo Casais Monteiro, anos 50

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