10.12.09

Resumo ourobórico



O meu quarto incha.
O meu corpo incha.
O meu corpo todo incha.
Tudo à minha volta é pequeno demais.
A mão fecha-se e aperta e a luz não sai.
As paredes do quarto são a barragem da minha vida.
O desespero, transborda assim.
As paredes do quarto são a puta desta paisagem sempre a mesma e cada vez mais alta.
Sou um expatriado de mim próprio.
E eu próprio sou uma contradição.
Se quero fugir e abrir ao mundo há logo algo que invento para me prender.
Se entramos os dois no quarto e nos despimos há logo uma razão irracional e absurda para eu fugir dali.
Se há um barco, eu sou esse barco e a corrente inversa.
Mete-me medo, estranheza, haver o mundo, as coisas.
Horroriza-me o sentir, o acontecer, o relacionar-me.
Como se só conhecesse o mundo de ter ouvido falar dele.
Eu odeio estas paredes e são elas o meu oxigénio.
Eu odeio a minha mente e no entanto ela é a minha mente.
Eu quero arrancar esta carne preconceituosa e burocrática aos meus ossos.
Eu quero vestir-me de vida e despir o sonhá-la.
Eu quero sentir tudo e experimentar tudo.
Tenho sonhos adolescentes e no entanto sou um velho.
Às vezes penso em morrer mas sou demasiado cobarde.
Talvez esteja a morrer e a cobardia seja um sintoma.
Já me disseram que o amor era um sintoma.
Não acredito que tudo o que faça se resuma unicamente a neurotransmissores e hormonas.
A angústia é um sol prateado.
Eu mordo os dentes e não sinto nada.
Eu disparo e mato e não sinto nada.
Eu olho o espelho e a cascata que me atinge é inodora, incolor, insípida.
Mas é uma cascata.
A minha letra é pequena e às vezes uma cascata.
As pessoas dependem dos objectos, dos brinquedos, das chupetas.
Qual é a minha chupeta?
Qual é a minha distância?
Como se chama ao arder?
Eu sou a chama e a água que cai em cima dela.
Tudo ao mesmo tempo.
Eu sou um ciclo, a semente, quem come o fruto e quem o caga e logo a seguir a vê rebentar da terra preta e bela e bolorenta.
É bela a terra.
E as coisas mais simples deste andar por aqui.
Como partir pão, rachar lenha, contar histórias, ouvi-las, ficar a olhar o mundo e tudo o que estiver a acontecer e a se mexer nesse momento.
Até a dor e o aborrecimento são belos.
Fazem parte disto tudo.
Até uma pedra da janela é bela.
Talvez seja mais simples aceitar a revolta que revoltar-me contra a cedência.
Isso não é preguiça.
Deitado, também penso.
Deitado, também penso e imagino.
Não – estava a falar do viver.
Eu vivo-me.
Sou incompleto.
Isso é simples e não revolta.
Revolta contenho eu.
Em dose maior que a diária recomendada.
É por isso que a letra começa pequena e cresce no fim.
Porque a reflexão ilumina e não se encontra somente nos espelhos.
O que chamar a um velho com a revolta impaciente de um jovem dentro?
O que chamar a um homemcasa, com paredes e quintal, tudo dentro de si ao mesmo tempo?
Eu não sei porque tenho em mim ao mesmo tempo a resignação e a revolta.
Irrita-me, dói às vezes, horroriza–me outras tantas.
Sei apenas que aceito e me revolto ao mesmo tempo e é só isso que eu sei.
Talvez todos os outros sejam mais ou menos assim também.
É delicioso o extremo.
Talvez isso seja consequência do choque entre os quereres.
Eu sou a arma carregada e a mão que a trava.
Se a arma disparar, talvez não ouça o tiro.
Isto não é querer ser deus ou o mundo.
É como me sinto.
Sinto a arma pesada e fria.
Eu sou a mão que lhe sente o peso e o metal.
Eu sou o seu peso e a dureza do seu metal.
Eu sou o desconforto do metal frio na pele.
A estranheza de segurar uma arma.
A confusão na cabeça de quem a mira.
A inércia de um conjunto de peças metálicas e algum óleo.
Eu sou tudo isso.
Esqueci a pólvora.
Os homens disseram que a Lua cheirava a pólvora.

(direitos reservados)

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